Com a participação de 41 especialistas de diferentes países da América Latina, um estudo inédito foi publicado com as diretrizes referentes ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de pacientes com câncer de cabeça e pescoço nesta região do mundo. Até então, os estudos de consenso se baseavam, essencialmente, na realidade de instituições da América do Norte e de países desenvolvidos da Europa.
O trabalho, recentemente publicado na revista científica JCO Global Oncology trata-se do primeiro consenso latino-americano sobre o tratamento do câncer de cabeça e pescoço e contém importantes diretrizes sobre o manejo dos tumores de cabeça e pescoço adaptadas à realidade vivenciada na América Latina e, em especial, no que diz respeito à escassez de recursos. O pioneirismo do documento aliado à clara preocupação dos autores em propor estratégias ajustadas à realidade dos países latino-americanos no que diz respeito à carência de recursos e infraestrutura limitada vivenciadas muitas vezes em tais países, torna o documento ainda mais relevante e uma importante leitura para colegas habituados a tratar tumores de cabeça e pescoço no Brasil.
Ao todo, o documento propõe 48 recomendações, divididas em doze seções. Dentre estas seções, uma é dedicada exclusivamente à radioterapia. Nela, o consenso destaca que os atrasos no início ou conclusão da radioterapia reduzem as taxas de sobrevida e aumentam o risco de recidiva local. Dentre as bases para essa afirmação está um estudo, com mais de 600 pacientes com doença em fase inicial, que iniciaram o tratamento após o período recomendado de 30 dias após o diagnóstico. Entre aqueles que iniciaram no prazo de 31 a 40 dias o risco de recidiva (volta da doença) foi 2,6 vezes maior, quando comparado aos que iniciaram antes dos 30 dias.
No Brasil, vigora, desde 2013, a Lei dos 60 dias, que determina o início do tratamento oncológico em até dois meses após o diagnóstico da doença. O recomendado para início da radioterapia curativa, destaca o consenso, é normalmente de 30 dias após o diagnóstico. Para radioterapia pós-operatória, o tratamento deve ser iniciado dentro de quatro a seis semanas após a cirurgia. Para prevenir interrupções no tratamento e seu impacto nos resultados oncológicos, avaliações semanais dos pacientes são essenciais. “Um agravante é que, apesar do prazo de 60 dias preconizado pela legislação brasileira, a lei acaba não sendo devidamente cumprida, sendo comum espera ainda maior para o início do tratamento oncológico. Em virtude disso, a doença evolui e as chances de sucesso do tratamento acabam sendo significativamente reduzidas”, ressalta o radio-oncologista Diego Rezende, membro da Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT) e um dos autores do consenso.
De acordo com o trabalho científico, os problemas associados com a incidência e mortalidade por câncer de cabeça e pescoço são mais graves nas regiões menos desenvolvidas, como América Latina, África e parte da Europa e Ásia. Elas respondem por 65% de todos os pacientes diagnosticados e por 75% das mortes causadas pela doença no mundo. Tais números são reflexo das barreiras de acesso aos serviços de saúde especializados, aos exames para diagnóstico precoce e ao tratamento no tempo ideal e de qualidade.
Principais pontos do consenso sobre Radioterapia
No consenso, a seção 12 é dedicada exclusivamente à radioterapia. Nela, os participantes enfatizam a importância dos avanços tecnológicos vivenciados pela radioterapia nas últimas décadas e a relevância das novas técnicas, que propiciam, por meio da técnica de modulação do feixe de radiação, melhor delimitação do alvo a ser irradiado (atingindo apenas o tumor e preservando as células saudáveis), além de oportunizar melhor planejamento das doses prescritas (com esquemas personalizados de fracionamento) que buscam reduzir o número de sessões e, consequentemente, de deslocamentos do paciente até o local de tratamento.
Dentre as novas tecnologias está a radioterapia de intensidade modulada (IMRT) que, de acordo com os especialistas envolvidos na elaboração do documento, deve ser considerada a técnica de tratamento padrão para praticamente todos os tipos de câncer de cabeça e pescoço. “O único contexto em cabeça e pescoço em que a radioterapia com intensidade modulada (IMRT) não é considerada como técnica padrão é no de tumores de laringe em estágio inicial. Nesse cenário, radioterapia com técnica conformada tridimensional é considerada adequada”, aponta Diego Rezende.
No Brasil, a tecnologia IMRT está inclusa no ROL de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para pacientes com câncer de cabeça e pescoço, assim como da região do tórax (pulmão, esôfago e mediastino) e, mais recentemente, para câncer de próstata. “Por conta das fortes evidências, a primeira aprovação de IMRT pela ANS foi, justamente, para câncer de cabeça e pescoço”, reforça Rezende. Por sua vez, pondera o especialista, o cumprimento da cobertura obrigatória por parte dos planos de saúde é, em muitos casos, desafiador.
Na saúde pública, o acesso é ainda mais limitado. Diferentemente de outros processos de incorporação tecnológica na rede pública, a radioterapia é paga por pacote independente da técnica de tratamento utilizada. “É um contexto que não considera, para o repasse, se foi ofertada ao paciente uma técnica mais antiga (como, por exemplo, a radioterapia convencional 2D) ou uma mais moderna (conformacional ou IMRT). Com isso, não há uma clara motivação para os serviços de radioterapia realizarem os investimentos necessários a fim de ofertar aos pacientes a melhor técnica disponível e considerada como padrão na literatura”, lamenta Rezende.
Campanha Julho Verde
Além disso, no próximo mês irá iniciar-se a campanha do Julho Verde voltada para a conscientização mundial sobre o câncer de cabeça e pescoço. Os tumores desta região estão entre os mais incidentes no mundo, sendo que os locais mais comuns são a cavidade oral (boca, lábios, língua, entre outros) e laringe. No mundo, mais de 613 mil pessoas recebem, anualmente, o diagnóstico de câncer de cavidade oral ou laringe, de acordo com a Agência Internacional para Pesquisa do Câncer da Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, mais de 41 mil pessoas devem receber, em 2024, o diagnóstico destas doenças, apontam as estimativas do Instituto Nacional de Câncer (INCA).